21 de novembro de 2016

Carta Aberta a Fátima Bernardes - EuEscolhoSalvarOpolicial

Por Danielle Jaime - Dona Fátima, vamos conversar um negócio aqui. 

Eu não assisto seu programa, sabe. Na hora que passa eu estou fazendo coisa melhor, ou seja, trabalhando. Mas como a gente tem acesso a tudo nessa vida hoje em dia, eu quero aproveitar para te contar uma história que aconteceu comigo, quem sabe chegue no seu whatsapp também.

Há uns anos eu me tornei acadêmica de Enfermagem. Entrei na faculdade feliz da vida, animada, queria ser de tantas áreas que a senhora não faz ideia. Acho que é coisa de geminiana, querer fazer tudo ao mesmo tempo... No primeiro ano, eu queria ser da obstetrícia; no segundo, queria trabalhar em centro cirúrgico; no terceiro queria ser do SAMU... Eu sempre achei muito interessante essa parte de observar casos complexos, de agir com rapidez para salvar uma vida que, por poucos momentos, depende de toda uma equipe. Se uma pessoa faz algo errado, como dizem por aí, “dá ruim.”


Um belo dia, no 3º ano, eu tive que cumprir umas horas na clínica médica. Eu odiava. Achava muito monótono, não conseguia acompanhar metade dos casos devido à minha falta de interesse. A verdade é que eu não fazia a mínima questão de estudar para aquilo. Sabe quando a gente vai a um lugar porque tem que ir? Porque é o que tem para hoje? Tipo a senhora aí no seu programa, quando tem umas pautas sem sentido algum... Então! Eu ia. Até que certo dia me falaram que eu e meus colegas ficaríamos num setor que, posso te dizer, a gente não sabia o que esperar. Sabe o nome? Papudinha.


A senhora não é daqui de Brasília, mas como conceituada jornalista que sempre foi, deve saber que papudinha vem de Papuda, o maior presídio que tem aqui. Papudinha então era um nome “carinhoso” para umas celas disfarçadas de enfermarias que ficam lá no fundo do corredor do 11º andar do Hospital de Base. Lá, dona Fátima, se a gente brincasse, “dava ruim” era para a gente, meros estudantes, tentando aprender, tentando colaborar com o Sistema Único de Saúde, ofertando nosso trabalho e nosso conhecimento àquele pessoal ali algemado nas macas, com marcas de balas por todo o corpo. Eu até posso te contar sobre um que tinha uma bala alojada na cabeça... Ele descia e subia dias e dias tentando fazer uma cirurgia, mas nunca dava certo porque nunca tinha material suficiente. Normal, não é? Estranho seria se estivesse tudo certinho. Eu lembro de um, tetraplégico, 18 anos, que sempre caía para mim na hora de fazer o curativo. Ele tinha uma ferida enorme na região sacral que, olha, cabia a minha mão e a da senhora juntas lá dentro. Sabe por que ele ficou assim? Foi assaltar, trocou tiro com a polícia e acabou indo de cadeira de rodas e tudo para a cela, morar com mais não sei quantas pessoas tão boas quanto ele. Não morreu não, estava lá, vivinho da silva, contando em alto e bom som que se um dia pudesse voltar a andar, faria tudo de novo.


Mas eu vim aqui para te contar não sobre esse aí do Hospital de Base, mas sobre um que chegou para nós lá no HRT - Hospital Regional de Taguatinga. Eu não lembro a idade dele, mas do rosto eu nunca mais vou esquecer, até porque ele foi um dos motivos que me fez sentar e pensar sobre o que eu estava fazendo da minha vida. Na época, eu tinha 23 anos, ele devia ter 21, no máximo. Gente boa também, dona Fátima. Ele foi assaltar um pai de família, deu não sei quantos tiros no cara, matou na hora. Virando a esquina, encontrou com um amigão dele, para quem estava devendo dinheiro de drogas, e o amigo encheu a cara, o corpo e todo o resto dele com bala. Aí eu te pergunto: Morreu? Morreu não. Chegou para a gente gritando, com a cara toda estourada, dizendo que tínhamos a obrigação de salvá-lo. 


Eu queria muito ter tirado uma foto de como ele chegou, porque se eu relatar aqui a senhora vai dizer que é mentira. Ele tinha buraco de bala até na boca e, ainda assim, se achava no direito de xingar a mãe de todo mundo que estava lá, tentando salvar a vida dele.


Ele deu entrada no centro cirúrgico às 9h30 aproximadamente, quando era 12h30, hora da gente ir embora, ele ainda estava lá, todo furado, com o braço direito já sem circulação, gelado, mas vivo, fazendo sabe o que? Esperando o helicóptero do SAMU ir buscá-lo para transferi-lo para o Hospital de Base. E sabe aquele pai de família que ele matou na esquina? Acredito que ainda estava lá... Esperando o rabecão, a mulher e quem sabe os filhos para darem o último adeus.


Sabe o que eu quero te mostrar com isso, dona Fátima? Os bons nem sempre morrem jovens, mas morrem rápido. Naquele dia, segurando o braço direito daquele monstro, eu jurei para mim mesma e para Deus que eu não faria mais parte daquilo, porque se dependesse só de mim, ele morreria ali. Não teria SAMU, não teria médico, não teria código de ética algum que salvaria aquele cara. Eu não era obrigada a ser conivente com uma classificação de risco que prioriza o atendimento de alguém que estupra, que mata, que faz o mal, que chega aos pedaços, mas vivo, me xingando, me dizendo que tenho que salvar a vida dele. Repito, dona Fátima, eu não sou obrigada!


Naquele dia eu percebi que eu estava do lado errado. Eu não tenho perfil algum para salvar quem não presta. Não sou Deus, não sou juíza, mas também não estou disposta a promover a saúde de quem não merece, porque quando ele estiver bem, vai fazer como aquele de 18 anos que eu te contei, vai encher a boca para falar que faria tudo de novo. Já pensou se esse pai de família da esquina fosse seu ex-marido, dona Fátima?


Não adianta vir com polêmica perguntando quem salvaria quem. Cada um tem suas prioridades, cada um tem sua vocação, cada um tem o respeito pelo código de ética que lhe convém. Sabe o que aconteceria com o policial levemente ferido? Provavelmente morreria. Enquanto o bandido, por pior que estivesse, sairia ainda do local da ocorrência andando de helicóptero e ofendendo as pessoas.


O objetivo do meu texto é exclusivamente justificar o meu voto em relação à enquete. Já pertenci à parte assistencial e vi de perto vários casos, até mais graves do que os que relatei, de infratores que se valem das regalias do Sistema Único de Saúde para cometerem o que acham certo e irem comer, beber e dormir numa enfermaria que, para muitos, parece um quarto de hotel. E essas não são palavras minhas, eu ouvi isso de um dos detentos. Até televisão para assistir desenho eles tinham, enquanto os pacientes da ala comum não possuíam sequer um rádio a pilha para se distraírem enquanto enfrentavam o mal do caos da saúde pública, bem como suas próprias enfermidades.


Como escrevi anteriormente, cada um segue o código de ética que lhe convém e, infelizmente, o da Enfermagem não é para mim. Entendo que a partir do momento que os meus ideais se sobrepõem à minha função, é porque eu não deveria estar naquele lugar.
Sabe, dona Fátima, fazendo uso do meu direito de me retirar do que me incomoda, eu abandonei a Enfermagem para estudar para a Polícia. Porque para mim, não tem prioridade de atendimento nesses casos. Bandido bom é bandido morto.

Reflita.

#EuEscolhosalvaropolicial

Fonte: Facebook

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