Mais uma vez, manifestações. A favor e contra
o impeachment da presidente da República. Desta vez com alterações ainda
maiores no tom das vozes e no teor das falas. Houve até quem ameaçasse fazer
barricadas nas ruas. Ainda bem que era apenas retórica. Em todo o país,
ocorreu de forma pacífica o exercício legítimo do direito da sociedade de
protestar contra os que usurpam suas vitórias e roubam suas esperanças.
Podemos concordar com
todas as falas, todas as faixas, todas as narrativas? Claro que não, mas a
honestidade impõe reconhecer que as ruas mostraram uma monumental e muito
relevante insatisfação contra a corrupção e a mentira entranhadas nas
instituições e nas relações de poder.
Contra a deterioração da
situação econômica do país pairando sobre a vida de todos. Contra os acordos
sub-reptícios que ainda continuam sendo feitos visando benefícios políticos de
curto prazo, atentatórios ao interesse da sociedade e à integridade do Estado.
A favor da ação independente da Justiça e dos órgãos de investigação.
Tenho denunciado, com a
insistência que os meios à minha disposição permitem, a atitude lamentável de
alguns políticos – incluindo alguns dos atingidos pela crise política e pelas
denúncias de corrupção – de instrumentalizar o momento e as instituições,
aproveitando-se dos problemas em vez de buscar soluções compatíveis
com o interesse público e o clamor por mudanças.
É o uso perverso da
máxima que diz que "crise é sinônimo de oportunidade". Buscam a
oportunidade de melhorar seu cacife no jogo do poder, enquanto a sociedade está
nas ruas questionando, cada um à sua maneira, o estrago que esse jogo faz, e
tenta continuar fazendo, na vida do país e dos cidadãos. O vaivém
de manobras no espaço institucional para proteger pessoas e grupos só
agrava a instabilidade política, social e econômica, e gera revolta.
As manifestações são
legítimas. Elas são o termômetro da crise política, e não se pode culpar o
termômetro por indicar a gravidade da febre. A responsabilidade dos
que receberam um mandato é enorme e, se traíram a confiança da sociedade,
precisam se explicar perante a Justiça e se submeterem às penas, caso o ilícito
seja comprovado. Esperemos que este seja um caminho sem volta no Brasil.
Governabilidade pragmática
Nas vésperas das manifestações, fiz a
seguinte postagem: "O Game of Thrones da
política colocou em risco tudo o que a sociedade brasileira alcançou de mais
importante nas últimas décadas: democracia, estabilidade econômica, inclusão
social. (...) Se queremos interromper o ciclo pernicioso que solapou as conquistas
de décadas de trabalho, temos que garantir que o combate à corrupção não seja
interrompido. É no sucesso das investigações e na exemplar punição dos culpados
que está a chance do Brasil de recuperar a confiança em si mesmo. O resultado
será uma oportunidade para a necessária mudança cultural: uma nova atitude dos
governos, dos parlamentos, das empresas, das instituições e de todos os
cidadãos e cidadãs. Um país que se eleva, pois se leva a sério".
Se, de fato, queremos
mudar e estabilizar a mudança, precisamos fechar o ciclo da nefasta
governabilidade pragmática feita com base na distribuição de cargos, assentos
em conselhos e ministérios com altos orçamentos, tendo como finalidade maior a
continuidade no poder e ganhos descabidos à custa do Estado.
Ela é fonte permanente
de corrupção, fragilização e descontinuidade de políticas públicas, além de
enterrar a ética como elemento indispensável ao exercício da função pública.
Precisamos transitar para um modelo de governança que componha o
governo e construa sua base parlamentar com o lastro de um
programa fortemente legitimado pela sociedade e aberto à sua participação e
fiscalização.
Isso se chama
institucionalização das conquistas, em lugar da apropriação indébita delas,
como se pessoas ou partidos fossem seus donos. Apropriação esta que se completa
com a tentação de se perpetuar no comando do país, lançando mão de meios que,
na prática, inibem a alternância no poder e colocam em risco o fortalecimento
da democracia.
O Brasil precisa parar
de dar cheque em branco a seus governantes e começar a exigir clareza e
cumprimento de programas. Não pode mais se deixar levar, como aconteceu nas
eleições de 2014, pela ditadura do marketing, pela lei do mais forte, pelos
slogans vazios e pela agressividade das mentiras. Continuar a proceder assim é
alimentar as ervas daninhas que crescem frondosas no quintal da política
tradicional, regadas a acertos espúrios e dando sobrevida contínua a figuras e
atitudes que já fizeram muito mal ao país.
Os que estão hoje em
posição de poder – especialmente os que têm alguma participação na
gestão culposa ou dolosa que resultou na crise atual – devem aceitar
a ativa vigilância da sociedade e não tentar desqualificá-la. Não é
hora de manobras de bastidores pactuadas por poucos. Não é mais hora da
desculpa esfarrapada e inaceitável de "todos fazem isso" ou
"sempre foi assim".
Nova política REDE
Pois é chegada a hora de
não ser mais assim. E a responsabilidade histórica indelegável de abrir caminho
a este novo momento, ainda que seja de todos nós, é sobretudo de quem está no
poder hoje. Se há contas do passado a acertar, seja de quem for, que a justiça
seja acionada para tanto. Que isso não se transforme em justificativa para
evitar ou minimizar o necessário acerto de contas do presente.
É hora, principalmente,
de um envolvimento geral na construção da transição que assegure profundas
alterações na visão, nas estruturas, nos processos e nas nossas dinâmicas
políticas, econômicas e sociais. Não só pelas mãos dos partidos e das
lideranças confinadas em seus próprios interesses, mas por meio de um debate
amplo e transparente em torno de uma agenda que ajude a criar novas
perspectivas para a nação.
Chega de agendas
meramente de poder ou de manutenção do status quo, que são positivas
apenas para quem as faz e sempre surgem nos momentos de crise para
contrabandear acordos e propostas patrocinadoras de retrocessos contrários aos
interesses dos mais frágeis.
Em sua sabedoria, de
alguma forma, os que estão se mobilizando para além da velha polarização política
e das cartilhas ideológicas de ocasião, entendem que agora, mais do que nunca,
chegou o tempo de incluir o Brasil num futuro ético, justo e sustentável.
Entendem que não é
estratégico nem correto reduzir seus esforços a um simples "fora
Dilma". Sentem que de certa maneira ela já foi "saída" pelas
forças políticas tradicionais, entre as quais parte de seu próprio
partido. Saída, enfim, pelas lições que insiste em não querer aprender.
Para aqueles que sentem
que a grande força deste momento difícil é o exercício pleno de sua cidadania,
o desafio é deixar cada vez mais claro que estão se movimentando para dar
suporte não a forças retrógradas, mas à chegada de um novo tempo, sonhado e
inscrito na Constituição resultante de nossa jovem democracia.
E, para tanto, é preciso
fazer ecoar uma nova cultura política, não de alinhamento automático e
subalterno a "salvadores da pátria", sejam eles quem forem. Mas uma
cultura política da independência, dos valores universais, da ética, da
radicalidade da democracia, na defesa da investigação com autonomia, da punição
por respeito à justiça e não por sentimento de vingança, na busca do diálogo
legítimo, que não seja apenas uma armadilha para encurralar e dobrar
adversários. Um novo tempo dos que, aprendendo com os próprios erros,
amadurecem, tornam-se melhores e maiores.
Fonte: UOL